Rev.Pe. Rodson Ricardo Souza do Nascimento
Introdução
Em minha prática pastoral, de vez em quando acontecem situações curiosas. Em mais de uma vez fui indagado sobre se minha igreja era “católica” ou “protestante”, se deveria me chamar de “padre” ou “pastor”, se acreditávamos no “batismo com o Espírito Santo e nos dons espirituais”. Além disso, alguns questionam qual a nossa “doutrina oficial” sobre a Eucaristia, o juízo final e a Virgem Maria. Creio que esses questionamentos também já devem ter sido feito a muitos paroquianos. Nesse sentido este texto busca esclarecer o que é aceito pela maioria dos anglicanos no tempo e no espaço (Dogmas), o que é visto como questões importantes, mas secundarias (doutrinas) e o que é visto como questão individual, sem muita importância (opiniões). Há uma “hierarquia de verdades” que necessita ser conhecida.
1) Dogma
A crença é considerada “dogma” quando se mostra essencial ao Evangelho e Tradição. Em outras palavras, quando sua negação parece acarretar apostagia (abandono) ou heresia (separação) da fé cristã. O termo deriva do grego δοκέω (dokeo) que significa “pensar, imaginar ou ter uma opinião”. Em Atos 16, 4, as decisões disciplinares tomadas pelo “Concilio dos Apóstolos” (At 15,28) são designados como dogmata.
O dogma surgiu como uma resposta às verdades da fé cristã ameaçadas por grupos rebeldes e dissidentes. A rejeição do dogma sempre foi considerada motivo que podia levar à expulsão da Igreja. Dogmas são como “axiomas” na matemática, princípios fundamentais que devem ser respeitados por todos os seguidores de uma religião. Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, chamava de “Artigos de Fé”, os principais dogmas cristãos e enunciou as condições para que fossem aceitos como tal: 1) verdades que são reveladas diretamente das Sagradas Escrituras; 2) têm grande importância para a fé e a vida cristã, 3) pertencem a um símbolo (credo) ecumênico. Foi somente após a chegada da modernidade que o dogma passou a ser visto como alguma coisa ruim, irracional, um verdadeiro obstáculo ao pensamento.
Os Dogmas anglicanos estão sintetizados nos dois credos históricos: o Apostólico e o Niceno-Constantinopolitano. Esse minimalismo na definição dos conteúdos da fé faz com que a Igreja Anglicana não seja uma igreja confessional ou doutrinal. É uma igreja “credal” pois exige que seus membros vinculem a fé apenas aos credos históricos da igreja antiga. Mas por que deveríamos nos interessar por algo que tenha ocorrido há tanto tempo? A resposta é óbvia. Porque seria tolice saltar diretamente da Bíblia para os dias de hoje. De fato, não somos a primeira geração, depois da igreja primitiva, a esforçar-se para ser a comunidade de Cristo na terra. Pelo contrário, somos a encarnação de uma “trajetória” histórica – o povo de Deus ao longo dos séculos. A Igreja, da era patrística até o presente, sempre buscou expressar corretamente sua fé. Nossos antepassados, tal como nós, preocuparam-se com o significado da mensagem bíblica. Suas deliberações, conclusões e confissões nos proporcionam um legado seguro e duradouro. Eles nos deixaram uma vasta herança, uma valiosa ferramenta, que são os credos históricos.
Outro aspecto importante é o ecumenismo. Tomar os credos como referência dogmática nos faz mais conscientes que somos membros de uma comunidade de fé que abarca 2000 anos de história. Ao recitarmos nossa fé dominicalmente sabemos que estamos em comunhão com a fé inicial da Igreja, o depositum fidei. As formulações dos credos resistiram ao teste do tempo e tornaram-se declarações clássicas da verdade teológica, figurando como marcos na historia da Igreja.
Essas confissões de fé deixaram o povo de Deus coeso ao longo dos séculos. Delimitaram as fronteiras da ortodoxia da Igreja. Por exemplo, ao longo dos tempos a igreja proclamou que Jesus Cristo é plenamente divino e humano. Assim, para ser verdadeiramente cristã, a resposta à pergunta: “Quem é Jesus?” tem de afirmar esses dois aspectos de sua pessoa.
Dessa forma quando um sectário bater à nossa porta para afirmar que Cristo não é o Filho eterno igual ao Pai sabemos que estamos lidando com alguém fora de sintonia com esse dogma fundamental da fé cristã. Por isso a Igreja Anglicana do Brasil recusa-se a adotar os “39 Artigos de Religião” porque esses não são credais, mas confessionais. Na época de sua redação era extremamente forte a influência calvinista na Inglaterra. Os 39 artigos definem muitas coisas consideradas “não-essenciais” e restringe o diálogo ecumênico.
Assim, no sentido estrito da palavra, não há nenhuma doutrina teológica especificamente anglicana, como existe uma “doutrina romana”, “luterana” ou “presbiteriana”. Isso não significa, porém, que as igrejas anglicanas não tenham um “discurso oficial” sobre certos pontos teológicos. Afirmar que não somos uma igreja doutrinal não é o mesmo que dizer que não temos doutrina alguma. Dizer que não estamos fechados a sociedade e as outras igrejas não significa dizer que somos simplesmente uma “Maria vai com as outras”, ou como dizia São Paulo: “jogados para cá e para lá por todo vento de doutrina” (Ef.4,14). Não somos uma ONG humanista, nem um clube de livres pensadores. Afinal se qualquer time de futebol exige que seus jogadores aceitem as regras e os padrões do seu clube, por que deveria a nossa igreja deixar questões de fé completamente abertas aos sentimentos e preferências arbitrárias dos indivíduos?
2) Doutrina
A Doutrina, no sentido em que usamos aqui, representa a crença considerada importante sem ser essencial. Ou seja, uma igreja ou denominação cristã específica pode considerar tal crença um teste para a comunhão sem asseverar que sua negação seja apostasia. A IEAB compartilha com toda a Comunhão Anglicana o “Quadrilátero de Lambeth” como base para o diálogo ecumênico e que demarca sua postura diante do que considera inegociável nos acordos bilaterais entre igrejas cristãs. Os anglicanos manifestam suas crenças em dois documentos básicos: O Quadrilátero de Lamberth e o Livro de Oração Comum (LOC). O LOC é uma espécie de “bíblia” da adoração comunitária e individual. Há três orações principais: matinas, vésperas e completas. O centro da adoração é a celebração eucarística dominical. O Quadrilátero tem servido de base dogmática para a unidade interna e externa de nossa Comunhão e afirma quatro crenças essenciais:
(1ª) A importância da Revelação profética. “Cremos que as Sagradas Escrituras contêm todas as coisas necessárias para a salvação”. Toda nossa doutrina e liturgia estão baseadas e fundamentadas na Bíblia: Cremos no Primeiro e no Segundo Testamento. Ao afirmarmos isso destacamos: a) a continuidade de nossa Igreja com a tradição profética semítica, a supremacia do texto bíblico sobre as autoridades humanas e a negação do enfoque fundamentalista bíblico;
(2ª) A continuidade Apostólica. “Os Credos Apostólico e Niceno – Escritos no tempo da igreja indivisa, constituem a confissão normativa da fé católica que preservamos ainda hoje”. Somos uma igreja histórica, herdeira de uma Tradição de 2000 anos. Consideramos-nos uma parte importante da Igreja de Cristo, mas não a sua totalidade;
(3ª) A realidade da graça divina. “A Igreja Anglicana professa o Batismo e a Eucaristia como legítimos sacramentos diretamente ordenados por Cristo, sendo eles sinais eficazes da graça e da boa vontade de Deus para conosco.” A Igreja Anglicana é uma igreja sacramental. Os sacramentos são sinais externos e visíveis de uma graça divina interna e espiritual. Os sacramentos expressam nossa crença na natureza sacramental do universo e da vida, significando que Deus está presente e atuante na criação em todos os seus aspectos. Para nós Cristo é o maior dos sacramentos. Há dois sacramentos principais: o Santo Batismo e a Santa Eucaristia e outros cinco, chamados também de sacramentos menores ou ritos sacramentais (Crisma, Ordem, Matrimônio Reconciliação e Unção dos Enfermos) que testemunham a presença divina em nossas vidas;
(4ª) A necessidade de uma comunidade de fé. “Professamos que a autoridade transmitida por Cristo aos apóstolos e por esses aos seus sucessores (incluindo nossos bispos) é, ao mesmo tempo, garantia e expressão da universalidade e apostolicidade da Igreja”. Para nós a fé não é uma atitude egoísta e solitária. A fé cristã se fundamenta no amor ao próximo e na vida em comunidade. Toda comunidade precisa de líderes. Nossos líderes são os bispos. Na Tradição Anglicana a autoridade é descrita como um círculo, onde o poder flui de fora para dentro. Nosso líder mundial é o 105º Arcebispo de Cantuária, sua Graça Rowan Williams, mas ele não tem autoridade legal fora de sua Província. Ele serve como guia espiritual e símbolo da unidade, mas não é nosso Papa. Na nossa tradição os leigos também têm poder em todos os níveis das igrejas anglicanas: eles escolhem seus bispos e padres e participam do dia a dia de suas comunidades. As mulheres também participam do ministério ordenado em igualdade de condições com os homens.
Como uma Igreja Cristã temos uma Missão a cumprir. Essa missão possui cinco dimensões: a) proclamar as boas novas do Evangelho; b) batizar, ensinar e nutrir pastoralmente nossos fiéis; c) servir com amor aos necessitados; d) lutar pela transformação das estruturas injustas; e) zelar pela integridade da vida em todas as suas manifestações. Para isso precisamos de todas as pessoas de boa vontade. A Igreja Anglicana é essencialmente ecumênica. Somos uma Igreja que se considera parte da Igreja Cristã e não a única dona da verdade. Não afirmamos saber tudo sobre Deus e as religiões. Cremos que a paz no mundo passa pela paz entre as crenças e pelo testemunho de unidade dos Cristãos. Assim a negação de uma doutrina pode até ser considerada heresia, mas não diretamente apostasia. Outros exemplos de doutrina anglicana são o batismo infantil, a liturgia, as ordens monásticas e etc.
No caso da IEAB, a instância que define as doutrinas oficiais é o Sínodo Geral que reúne trienalmente bispos, representantes clericais e representantes leigos das dioceses. De acordo com a Constituição da IEAB, somente o sínodo pode aprovar, emendar ou reformar os documentos oficiais da igreja que normatizam o culto, a disciplina e a doutrina da IEAB. Mas, por ser parte da Comunhão Anglicana, isso sempre deve ser feito em processo de consulta e escuta das outras igrejas procedentes da tradição anglicana, na reunião de todos os bispos anglicanos, sob a direção do Arcebispo de Cantuária, a cada dez anos (A Conferência de Lamberth).
Os documentos que contêm o “discurso oficial” da IEAB são: o Livro de Oração Comum (LOC) e o Resumo da Fé Cristã Comumente Chamado Catecismo. O Catecismo é usado (ou deveria ser) para a transmissão aos neófitos dos conteúdos que a igreja julga essenciais para a fé. O LOC é usado para a realização das missas e cerimônias sacramentais (confirmação, batismo, casamento), funerais, etc., contendo a forma como a igreja regula sua celebração litúrgica. Tais documentos mencionam ou listam outros textos considerados essenciais para a compreensão da fé professada pela IEAB: o Credo Apostólico e o Credo Niceno. O Catecismo menciona também o Credo Atanasiano, embora pouquíssimos leigos (e mesmo clérigos) o conheçam. Os “39 Artigos de Religião”, são considerados, na IEAB e em outros países (Estados Unidos, Canadá, etc.), apenas um documento histórico de estudo e consulta.
3) Opinião
A crença é relegada à condição de opinião quando é considerada interessante, porém relativamente sem importância para a fé cristã. A pessoa tem permissão para crer o que preferir acerca do assunto, desde que não cause conflito com algum dogma ou com alguma doutrina. Discordar desse tipo de crença constitui simplesmente diferença de interpretação. Isso não implica que toda opinião tenha igual valor ou importância, mas que aceitá-la ou não é uma questão em aberto. São Paulo, por exemplo, expõe sua opinião sobre a relação entre celibato e casamento nesses termos: “não digo isso como uma ordem, mas como sugestão” (1 Co 7, 6).
Exemplos de opinião no anglicanismo é a questão quanto ao significado preciso da presença real de Cristo na Eucaristia (Consubstanciação, Presença Espiritual ou Transubstanciação), o número preciso dos sacramentos, a ação do Espírito Santo (Batismo com o Espírito Santo, dons espirituais etc.), a realidade dos anjos e demônios, a segunda vinda de Cristo (Pré-milenarismo, pós-milenalismo ou amilinelismo), o papel da Virgem Maria e dos santos na vida da Igreja (modelos de fé e interseção). As opiniões são encontradas nos escritos individuais dos teólogos e em documentos finais de encontros e congressos que discutem questões especificas da fé e da prática anglicana.
Questões polêmicas
Com a sua postura credal, a IEAB acaba permitindo mais pluralismo e diversidade hermenêutica. Numa igreja assim, a capacidade de convivência com a alteridade é fundamental para a sobrevivência institucional. Essa alteridade se manifesta em pelo menos três grandes tendências teológicas (que às vezes se misturam, de acordo com interesses políticos circunstanciais): são os “anglo-católicos”, os “evangélicos” e os “liberais”.
Simplificando, os anglo-católicos tendem a enfatizar a tradição anterior à Reforma, principalmente a Patrística e se aproximam dos católicos romanos e ortodoxos. Dão muito valor aos ritos sacramentais e símbolos litúrgicos. Sua eclesiologia é mais institucional (ou “alta” como preferem), afirmando que o episcopado é essencial (“esse”) à existência da Igreja. Os “evangélicos” enfatizam mais os princípios da Reforma Protestante (sola scriptura, justificação pela fé, regeneração etc.), centralizam-se na pregação, preferem uma liturgia menos formal e interpretam os sacramentos numa linha mais calvinista ou luterana. Defendem uma eclesiologia orgânica que aceita o episcopado não como “essencial”, mas como funcional (bene esse). Os chamados “liberais” podem ser oriundos do anglo-catolicismo ou da ala evangélica, mas seus referenciais teológicos são encontrados no século XVIII e XIX, enfatizando princípios do humanismo e do racionalismo. Prezam a razão, a intelectualidade, a cientificidade, uma interpretação mais social do Reino de Deus e abrem-se ao uso do método histórico crítico aplicado à Bíblia e à Dogmática.
O problema é que esses grupos não seguem uma única classificação. As categorias de “dogma”, “doutrina” e “opinião” são organizadas de forma diferente, de modo que o que é dogma para um pode ser doutrina para outro ou mesmo simples opinião. Como não temos mecanismos capazes de manter a unidade mundial da nossa igreja isso acaba tendo forte impacto no interior da Comunhão Anglicana.
Assim determinado grupo pode considerar dogma a crença no nascimento virginal de Jesus Cristo e tratar como não-cristão qualquer um que negue esse ponto, enquanto outro pode considerar a mesma crença como uma doutrina. Mas outro mais radical deseja relegá-la ao nível de mera opinião. Não são apenas em questões diretamente teológicas que esse debate acontece. No âmbito da liturgia (o uso de paramentos especiais pelo clero, por exemplo) ou da moral (divergência sobre a homossexualidade).
Em geral os grupos mais conservadores e ortodoxos tendem a esvaziar as categorias de doutrina e opinião. O perigo dessa tendência é retirar a possibilidade do debate e da convivência de diferentes pontos de vista. Enquanto isso os grupo mais liberais ou modernistas tendem a esvaziar completamente as categorias de dogma e de doutrina, deixando cada vez mais questões de julgamento privado dos indivíduos. O problema é que na prática esvaziar as categorias corresponde a transformar opinião em doutrina ou aceitar pelo menos um único dogma: a de que não existe dogma.
Finalmente acredito que precisamos encontrar meios de garantir a unidade e a inclusividade do anglicanismo. A Inclusividade exige capacidade de mediação, acordos, pactos, concessões. Toda tradição cristã, anglicana, ortodoxa, evangélica, é a objetivação da fé cristã. A Igreja não é estranha ao projeto de Deus, ela é parte essencial de sua encarnação. Parafraseando Leonardo Boff, ser anglicano significa aceitar uma atitude afirmativa de sua instituição e tradição. Quem assume uma igreja assume uma dada estrutura, um caminho determinado. Ninguém é cristão no vácuo. Não é possível professar uma fé sem palavras, sem símbolos, sem gestos, sem uma comunidade, sem um quadro vital de referencia: “Para ser cristão faz-se mister coragem para o provisório, para o dogma, para o direito, para a norma moral e a disciplina litúrgica. Sem um esqueleto não se sustenta um ser vivente”.
[1]As principais fontes para este texto são os textos “Anglicanismo no Brasil” do Rev. Carlos Eduardo Calvani e o livro “Iniciação à Teologia” de Stanley Grenz e Roger Olson.
Nenhum comentário:
Postar um comentário